Ensaio sobre os meus dados

sandra abreu

Vejo as pessoas defendendo o capitalismo como a única forma de se sobreviver em sociedade por que a lei de oferta e procura é o que motiva a criação, a invenção e a ciência, mas vou te falar que eu estou olhando para a tela deste computador há dezoito anos sem criar, nem inventar, nem testar teorias científicas por que a planilha do Excel não vai se preencher sozinha para o meu chefe.
As big tecs desenvolvem widgets todos os dias para seduzir investidores que não tem nada além de dinheiro e caem apostando milhões de dólares em virtualidades efêmeras.

— Sua empresa terá acesso a dados estatísticos inéditos sobre o desejo de compra destes clientes.
— Quero!

Manter uma equipe de suporte com mão de obra filipina, latina, indiana, para explicar que os bugs não serão corrigidos, sai bem mais barato do que contratar mais desenvolvedores para corrigi-los. Vender dados de clínicas de aborto para quem possa se interessar, paga todos os processos judiciais que o pedido de desculpas não foi capaz de deduzir.
Eles juram que a tecnologia é o campo da inovação, mas deveriam dizer imitação, cópia, plágio, roubo. Competição fazem as crianças no jardim de infância. Ninguém é de ninguém nesse colonialismo digital e nós, os ditos usuários, vamos pagando por features que eram grátis até semana passada e que, na realidade, são a razão pela qual eu baixei esse App.
Mas agora eu tenho que pagar a televisão e assistir propaganda no streaming que eu já estou pagando para não ver propaganda. Se eu quiser esquecer tudo isso e sair de casa pagando um carro pelo aplicativo, para que, de fato, ele chegue até meu endereço  num tempo razoável, me custará só mais cinco reais.

Todos os celulares Android ou iOS possuem algo chamado SDK que é a sigla para Kit de Desenvolvimento de Software ou Software Development Kit. Um conjunto de ferramentas que os desenvolvedores usam para criar os aplicativos do celular ou integrar serviços entre estes aplicativos.
O meu interesse é falar sobre essas integrações.
Você provavelmente já entrou em algum site em que foi solicitada a criação de uma conta para fazer login. Nesse momento, foi oferecida a possibilidade de logar usando a sua conta do Google ou do Facebook, o que facilita muito quando não queremos criar uma conta, apenas seguir em frente.

Então nos autenticamos naquele site específico usando nossas redes sociais,  esse é um exemplo de integração onde as minhas informações foram integradas ao serviço desse outro site, ou seja, minhas informações foram compartilhadas (até certo ponto) entre esses dois serviços para que eu pudesse criar minha conta.
Agora imagine que uma empresa faz integração com muitos Apps, mais de 500. Todos esses Apps oferecem serviços diferentes, seja GPS, música, banco, relacionamento, controle de período menstrual e por aí vai. Nos termos de uso desses Apps, a gente concorda em compartilhar alguns dados anônimos para melhoramentos no software.

O que exatamente é feito com esses dados compartilhados ou exatamente quais dados são compartilhados e com quem?

Por exemplo, sistemas de monetização (anúncios pagos nas redes sociais, aqueles posts patrocinados que sua amiga faz para vender artesanato) coletam diversos tipos de dados sobre a gente, como nossa localização, idade, gênero, gostos, curtidas, etc para personalizar os anúncios, mostrá-los só a quem interessa.
Nessas integrações entre aplicativos, nada impede o comércio destas informações pessoais. Se um App que eu nem conheço está integrado ao meu aplicativo de período menstrual para coletar informação do meu GPS, o que impede esse mesmo App que eu não conheço (e nem instalei) de coletar também todos os outros dados sobre a minha saúde?

Nada.

Por que na prática, os aplicativos nem precisam integrar o SDK do outro aplicativo diretamente. Se um App usar qualquer sistema de monetização/rastreamento de anúncios, esse fornecedor de rastreamento poderá coletar qualquer dados seja geográficos ou outros dados e revendê-los (ou seja, conversarem de servidor para servidor sobre o usuário final sem precisar de uma integração propriamente dita, então não precisam nem citar essa negociata nos seus termos de uso, apenas exigir permissões básicas para o uso do App). Permissões que a gente aceita sem ler e mesmo que leia também não muda nada.
Você já experimentou entrar em contato com alguma fornecedora de serviços telefônicos e internet? Eu já, e em menos de dez minutos, meus dados já estavam circulando a ponto de eu receber anúncios de imobiliárias diretamente em meu WhatsApp. Por que quem quer instalar internet precisa de um lar, não é mesmo?

— Mas que diabos essas empresas fazem com tantos dados?
— Money.

Imagine uma empresa que tem integração com quinhentos outros Apps e durante a pandemia rastreou o GPS de milhares de pessoas em uma determinada região, analisou e observou um aumento significativo do número de pessoas ao redor de academias de ginástica. Dessa análise foi possível prever um padrão de comportamento para os próximos meses e se antecipar a ele. Como? Traders/investidores compraram ações dessa rede de academias de ginástica enquanto o preço estava baixo, depois lucraram alto quando as pessoas começaram a se inscrever na musculação por que as ações subiram. Lucro em cima de dados compartilhados sem autorização.
Se essa situação não parece muito grave, o que me diz de empresas americanas que venderam dados de pessoas que visitaram clínicas de aborto, sua localização e as atividade dessas clínicas. Revelando quais clínicas estariam oferecendo aborto seguro fora dos estados onde a prática é proibida (há estados nos Estados Unidos onde o aborto é legal, como Colorado, Maryland, Montana, Nevada e Nova York ).

Estes dados não só revelavam que alguém visitou uma clínica de aborto, mas também de onde as pessoas estavam vindo. Esse detalhe é importante porque poderia mostrar quem estava viajando de estados onde o aborto é ilegal para estados onde ele é permitido e isso está prestes a se tornar crime em muitos estados se a Suprema Corte revoga o caso Roe v. Wade.
Então você está tomando uma decisão difícil, abre o celular e lá está uma propaganda pró-vida ou uma intimação por que seu nome, cidade, e outros dados pessoais foram vendidos. Brutal, não?
Chega disso, decidi que não vou mais participar dessa loucura e desligo a localização do meu telefone, mas se a gente for pensar direito, não é difícil saber onde eu estou a partir do IP da minha rede WiFi. Se eu passo dez horas do meu dia conectada ao mesmo WiFi, saio depois do expediente, me conecto ao WiFi da academia, compartilho uma foto de halteres e cadeira abdutora nas redes e volto uma hora depois, é fácil prever que eu vou querer comprar conjuntos de ginástica, creatina, Whey Protein e aquele tênis, não é mesmo?

Jogo a toalha e vou para o supermercado buscando umas guloseimas para mais tarde comer assistindo vídeos curtos feitos por inteligência artificial. Já na entrada, recebo ofertas de produtos que estão ao alcance da minha mão! Ninguém pediu isso, mas o Bluetooth na prateleira interage com a lista de compras do aplicativo do supermercado, iluminando exatamente onde encontro o item que vim buscar.
Esta tecnologia já é velha, mas esses transmissores são chamados beacons e usados para identificar o posicionamento das pessoas e localização de seus smartphones enquanto andamos pelos mercados e shoppings. Graças a transmissores bluetooth escondidos que se conectam com o aplicativo de compras que eu instalei por que o mercado me ofereceu descontos, serei rastreada durante minhas compras e bombardeada com propaganda em tempo real. Propaganda não, marketing de proximidade.

O lucro que visa acumular capital vai contra a lógica da natureza e tudo que se afasta da natureza adoece. A gente percebe a doença nos rostos dos presidentes fantoches, dos super-ricos das big techs, que, em algum lugar da internet, tem sempre alguém jurando que são reptilianos, androides ou alienígenas. E devem ser mesmo, com a capacidade que o cérebro humano tem de criar, inventar, solucionar e o tanto que a tecnologia já avançou, ainda estamos morrendo de fome, nas filas dos hospitais e do transporte público enquanto essa meia dúzia de ricos acumula todo o poder do mundo. Isso é de cair o cú da bunda.

Dispositivos bluetooth estão observando suas compras – Rodolfo Avelino
Prateleiras inteligentes da Kroger eliminam o papel, acendem as luzes e encantam os clientes – Microsoft News Center Brasil
Marketing Beacon Bluetooth para soluções de varejo e compras – DusunInternet das coisas (dusuniot.com)
Beacons: The Secret of Proximity Marketing – Zapt Tech
An Intentional Mistake: The Anatomy of Google’s Wi-Fi Sniffing Debacle | WIRED
Cars collect massive amounts of driving and personal information | wthr.com
Moving Past the Pandemic: How Fitness… | Health & Fitness Association (healthandfitness.org)
Marketing Beacon Bluetooth para soluções de varejo e compras – DusunInternet das coisas (dusuniot.com)
Location Data Firm Provides Heat Maps of Where Abortion Clinic Visitors Live (vice.com)
Wi-Fi scanning overview  |  Connectivity  |  Android Developers
Caso Roe v. Wade – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)
Location Data Broker Admits Users Accessed Data for Planned Parenthood Clinics (vice.com)
How Abortion Ruling Spurred Federal Action Against the Location Data Industry – The Markup
Location Data Firm Provides Heat Maps of Where Abortion Clinic Visitors Live (vice.com)

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