p.m.
Transcription of a video by O. Ressler,
recorded in Zurich, Switzerland, 24 min., 2004
A idéia original de criar esta linguagem secreta maluca me veio porque a terminologia de esquerda européia já não era mais viável. Hoje, quando as pessoas falam sobre comunismo, é gulag, ninguém quer saber nada a respeito. Ou, se falam sobre socialismo, então se referem à política de Schröder ‘ cortes nas aposentadorias ‘ e ninguém tampouco se interessa. E todas as demais expressões estandardizadas, tais como “solidariedade”, “comunidade”, estão todas contaminadas e não têm mais utilidade. Entretanto, as coisas que defendem na verdade são muito boas. Eu não tenho intenção de sofrer por causa de terminologia, pela qual não sou culpado; em vez disso, prefiro criar meu próprio jargão. Seria mais complicado explicar que o comunismo sobre o qual estou me referindo não é aquele que presenciei. É mais fácil dizer que sou um bolo-bolo, e aí as pessoas começam a pensar tudo de novo e a repensar as coisas.
Nasci na Suíça e moro em Zurique. Minha tarefa principal é lecionar numa escola secundária e sempre fui politicamente ativo nas minhas horas livres. Sou um velho ativista de 1960; estava lá, nas demonstrações anti-Vietnã e tudo aquilo. Mais tarde também estive com os sem-teto e tomei parte nos movimentos antinucleares. Fiquei um pouco envolvido em tudo que aconteceu. E então, de alguma maneira, o movimento cessou; ainda havia um movimento sem-teto em Zurique, e também sei que muitas casas em Genebra foram ocupadas, mas a coisa foi calmamente dominada pela polícia. Depois não restou mais nada lá. Seguiu-se, então, um clima depressivo, como costuma acontecer depois de tais movimentos cíclicos. Naquele momento eu disse: vou escrever tudo o que ainda devemos considerar como importante. Fiz uma lista, como a de natal, uma longa lista de coisas que ainda considero que vale a pena — colocar na meia.
Aí eu li a lista e vi que parece bem chata agora. Por exemplo, coisas como “queremos viver juntos, uns com os outros, em solidariedade”, “não queremos crescimento econômico”, ou “queremos respeitar o meio ambiente”. São todas aquelas chatices sócio-ecológicas que podem ser encontradas em plataformas de partidos. Eu queira espanar isso um pouco, por isso pensei, OK, vou inventar uma utopia. Porém não é, de maneira nenhuma, uma utopia. Conheço todas as utopias. Na maneira como são descritas, são de certo modo atraentes. Mas fiquei também sumamente fascinado pelo arredondamento, ao submergir em outros mundos com sua própria terminologia. Pensei: consigo vender essas coisas de maneira bem melhor, essas noções desejadas, se eu as dissimular como utopias.
Por isso inventei esta linguagem. “bolo-bolo” realmente não quer dizer nada a não ser comunismo. É simplesmente uma tradução; tratam-se de sistemas de sons polinésios. Certa vez estive em Samoa e gostei muito de lá. Há certos paralelos lá, remanescentes de sociedades relativamente intactas, portanto aí estava o meu livro.
Devo enfatizar que não existe uma única idéia nova nesse livro. Tudo se refere a algo que já tinha encontrado. É possível chegar ao bolo, à unidade por meio de várias direções, à unidade básica de como as pessoas podem conviver juntos com alguma sensibilidade sem destruir o planeta, seus nervos e seus produtos. Uma abordagem é a comunicação: quando as pessoas não conseguem falar racionalmente umas com as outras, elas se tornam dependentes de autoridades em escalões mais altos, têm de ter supervisores para realizar sua comunicação. Compreendemos, por exemplo, a teoria da comunicação que diz que ela pode funcionar informalmente com até 150 pessoas, o que significa que não são necessárias quaisquer estruturas. Fica, então, muito confortável e existem muito mais argumentos que o necessário, pelo fato de a comunicação ser tão fácil. Por isso cheguei a uma unidade básica, uma reunião, que deve ser relevantemente maior que 150. Digo que 500 não seria mau, 400, 600, 700 ou 800. Aí existe outro limiar que precisa ficar por volta de 1000, após o que se torna necessário delegar, para organizar. Tal administração exigira, então, um comitê e um certo nível profissional. Aqui chegamos ao domínio de uma burocracia estruturalmente necessária. E eu não gosto disso; a coisa cresce rapidamente, porque ninguém controla a burocracia, para que ela realmente faça aquilo que você quer. E esses órgãos de controle são, novamente, susceptíveis de corrupção e têm de ser monitorados; fica bem complicado.
Para mim, a janela encontra-se em algum lugar entre a organização social sensível do conforto das 150 pessoas e aquela, desconfortável e incipiente, das 1 000 pessoas. Têm de estar nesse meio-termo: esse é o caminho. Outro caminho poderia ser algo mais ecologicamente orientado. Os problemas ecológicos do planeta ficam no Norte, onde carecemos de aquecimento e onde criamos um projeto urbano que exige transporte em automóveis, por exemplo. Se a gente quiser se livrar disso, se quisermos reduzir o consumo de energia a um nível globalmente aceito, então aproximadamente um quinto do consumo presente teria de ser realçado aqui. Não estou falando do Sul; lá eles já usam 100 vezes menos energia que nós. Quanto a isso, não enfrentam problemas; eles talvez tenham um problema oposto. Vão ter que crescer para atingir um quinto da energia consumida. Mas, se a idéia é consumir menos energia, então não é mais possível ter carros, ou casas de uma única família, as pessoas terão de se movimentar conjuntamente. Então será possível pensar num tamanho de casa que seja mais fácil de isolar e menos custosa de aquecer. Os prédios se tornarão cada vez mais compactos, porque então o relacionamento da superfície externa com a quantidade é a mais eficiente. Isso quer dizer que é no Norte, por exemplo, nos Estados Unidos, que as pessoas morando em casas pequenas e suburbanas teriam de mudar para palácios “do povo”, ou eco palácios, mais fáceis de aquecer. Eu sempre digo que é possível fazer uma tipologia abertamente concreta, que naturalmente a gente tem que encarar com ironia. Todos nós temos que morar em edifícios que têm oito andares, cerca de 100 metros de comprimento por 20 de largura. Esta monstruosidade de concreto é uma necessidade ecológica.
Eu sempre começo com este bolo urbano ocidental. Nunca dito regras de como outras pessoas devem se organizar. Simplesmente pego a Suíça como exemplo, mas dá no mesmo para o resto da Europa ocidental. Como organizar a agricultura em conjunção com essas estruturas urbanas? Minha sugestão, e também a de muitas pessoas que vem estudando ecologia e agronomia, é a seguinte: na Europa ocidental, para suprir as necessidades de um bolo assim, necessitaríamos de 90 hectares do tipo de terreno que temos aqui. Numa cidade média como Zurique, esses 90 hectares podem ser encontrados num raio de cerca de 30 km em volta da cidade, aqui haveria espaço. Isso continua disponível, se não construirmos e pavimentarmos tudo em breve. E então seria possível, num sentido puramente esquemático, designar cada bolo para uma fazenda de 90 hectares. Isso é um cálculo bem generoso, porque na Suíça as fazendas medem, em média, 15 hectares, na Áustria talvez sejam um pouco maiores. Embora se tratem de unidades relativamente grandes, isso não significa que grandes áreas tenham de ser convertidas em fazendas. Essas teriam, intrinsecamente, estruturas bem diferenciadas, onde seria possível produzir tudo, de batatas a leite. Isso permitiria atingir uma boa eficácia ecológica, porque um caminhão pequeno ‘ ou talvez mesmo um vagão de trem ‘ teria de viajar apenas uma vez por semana entre a área rural e a urbana. Para a viagem de retorno, poderiam carregar fertilizantes. Então seria possível desenvolver um sistema em que as pessoas morando no bolo poderiam também trabalhar na área rural. Seria muito mais eficaz que o sistema de suprimento de supermercados de hoje, onde se está lidando com uma série de transportes intermediários, em centros de distribuição, e então, novamente em supermercados, e aí ainda temos de ir ao supermercado. No caso de bolos, cada bolo seria um supermercado, com departamentos de terras diversificadas, suficientemente grandes para desenvolver fazendas economicamente. Não se pode continuar com a agricultura de hoje porque ela só funciona com grandes suprimentos de petróleo, produtos químicos e outras coisas. São necessárias fazendas biologicamente mistas, onde se possa combinar plantios diversos na mesma área, de modo a se fertilizarem entre si. Não estes imensos campos monótonos; isso não funcionaria mais. Mas uma agricultura mista, assim, exige muito mais mão-de-obra que hoje ‘ o que é bastante bom ‘ talvez três vezes mais. Isso, porém, não é muito, porque na Suíça a agricultura utiliza mais ou menos 3% da força de trabalho, portanto então seriam cerca de 10%. Porém, nesse meio tempo, todos os bancos teriam sucumbido e haveria mais gente suficiente para entrar no sistema.
O que eu descrevi agora é o sistema; entretanto, eu o faria de modo diferente. Talvez seja bem mais divertido quando bolos diferentes em áreas diversas de terras troquem suas coisas entre si, para que não se tenha que comer sempre a mesma coisa. Certas coisas podem ser intercambiadas globalmente. Temperos, por exemplo, são bem leves e eficazes, ou óleo de oliva, nozes, tâmaras e todo tipo de queijo e lingüiça, vinho, é claro; tratam-se de produtos altamente concentrados, sem restrições ecológicas em termos de transporte.
A forma mais simples de intercâmbio é o presente. É também a mais perigosa, especialmente para quem o recebe. Esta troca é possível quando alguém é relativamente independente. O bolo possui uma soberania básica; na Suíça temos um ditado ‘ ser suficientemente independente para ser generoso. Em termos marxistas, não é necessário investigar se você presenteou valores demais. Há uma ampla variedade de presentes. E, uma vez que se assume que o bolo existe em todo lugar, doar significa um tipo de honra para esses bolos, o que significa que, em retorno, eles também podem receber algo. Essa seria uma importante forma de intercâmbio, que não fica especificamente presa a qualquer commodity. Pode-se dar de tudo; tempo, poemas ou o que se queira.
Provavelmente, o aspecto mais importante desse sistema que estou descrevendo seja o arranjo de troca permanente. Chamo isso de “feno.” Significa, por exemplo, que existem contratos de troca com bolos vizinhos. Se se quiser concretizar isso em termos suíços, então: você conserta nossa janela porque você tem uma oficina de consertos de janelas, nós consertaremos suas instalações sanitárias, de modo que cada bolo tem todo tipo de oficina de reparos.
Eu tenderia a ver uma terceira forma de intercâmbio num nível mais alto; eu me refiro àqueles sacolões de bairro ou centros de atacados da cidade. É possível descrever isso como socialismo ou comunismo. Os bolos de uma cidade, de um modo geral, carecem de mercadorias que não podem eles mesmo produzir, ou que necessitem apenas ocasionalmente. Eles possuem, por exemplo, um depósito central de atacado para maquinaria e quando necessitam de determinada máquina, vão lá e apanham. Seriam, portanto, serviços comunitários, como temos hoje com a água, a eletricidade, e certas commodities, como sal e açúcar, que exigem grandes volumes e têm de ser produzidos de alguma maneira centralizada. Seria possível distribuí-los de graça, porque todo mundo necessita da mesma quantidade, de qualquer maneira. Isso já seria possível hoje. Primeiro, eu descreveria algo assim como socialismo, ou até comunismo: todo mundo pega o que precisa e produz o que pode. Então, naturalmente, haveria a variável de troca por dinheiro; isso certamente estaria presente. Acho que o dinheiro é importante para mercadorias que não sejam utilizadas assim tão freqüentemente, que são produzidas especialmente ou sob medida. Isso funcionaria mais eficientemente em nível de vizinhanças, bairros, vilarejos ou cidades, de modo que é possível ter mercados ou bazares onde as pessoas podem trazer coisas como jóias, roupas, CD’s, arte, substâncias especiais, remédios, cosméticos e todo tipo de coisas interessantes. As pessoas poderiam ser membros de bolos ou vendedores-viajantes, e aí entra o dinheiro. O tipo de moeda realmente não interessa, pode ser moeda local ou um dólar globalizado ou cartão de crédito, como queiram. Realmente não importa; dinheiro não é perigoso, como objeto. Eu diria que dinheiro é perigoso somente quando se permite que alguém desenvolva sua própria dinâmica num setor de necessidade, tal como fornecimento de alimentos, por exemplo.
Se tivéssemos agora atingido essas condições ecológicas, por exemplo, 20% do consumo de energia, então ainda seria possível ter alguns carros no ambiente. Num bolo, talvez ainda existiriam 20% de carros, que as pessoas poderiam alugar. Isso seria suficiente, já que se tem de dirigir apenas uma vez ou outra. Mas será dificilmente necessário dirigir, porque não haveria razão para as pessoas irem a qualquer lugar. Significa que o número de automóveis seria reduzido umas dez vezes, a indústria automotiva quase que acabaria, como também todos os bancos que a financiam. Ao mesmo tempo, a indústria petrolífera entraria em colapso e deixaria de existir. Por outro lado, a indústria de eletrodomésticos se encolheria proporcionalmente, porque, por exemplo, seria possível lavar toda a roupa em uma única lavadora do bolo, o que seria 8 vezes mais eficiente que uma máquina de lavar normal. Todo o entretenimento eletrônico que ainda existisse por aí poderia continuar, só que não seriam mais necessários tantas máquinas. Na realidade, a indústria high-tech se reduziria só em termos de consumo. Seria preciso 10 vezes menos de tudo. E então temos apenas o aspecto de onde e como produzir o restante com maior eficiência. A resposta aqui é completamente clara: subcontinentalizar. Por exemplo, caminhões seriam montados num local, digamos, no sul de Varsóvia, para todos os bolos ou cidades entre os Montes Urais e o Atlântico. E seriam produzidos apenas módulos. Módulos médios, grandes e pequenos, um motor e então em bolos ou cidades haveria montagem dos módulos para fazer o que fosse necessário. Isto já ocorre hoje no terceiro mundo. Todos os ônibus de transporte público são feitos lá. O chassis é construído lá e tudo o que se fornece é o motor e o câmbio. Já é uma tecnologia eficiente. Como funcionaria? Faria isso simplesmente com dinheiro: as pessoas pagam. Naturalmente, você poderia agora perguntar: como é possível obter dinheiro? Existe, é claro, uma única opção: ou você paga pelo produto ou tem uma quota. E preciso alguma quantidade de caminhões e então os trabalhadores, que produzem caminhões, são pagos por nós indiretamente, por meio de dinheiro ‘ mas, na verdade, não se precisa de muito. Pode-se obter dinheiro, caso seja necessário, se a pessoa optar por vender parte das commodities, parte da força de trabalho ou dos produtos agrícolas, em troca de dinheiro. Isto cria, automaticamente, um mercado subcontinental, se for tentado.
Quando as pessoas moram perto, existe um controle social intrínseco que não exige nenhuma imposição organizada. Seria apenas tipo: que é que você está querendo de novo? A vigilância é simplesmente muito maior. Isso é lindo, no sentido em que previne um bocado de comportamento social danoso, e é possível reduzir a força policial. Eu diria que a polícia poderia ser reduzida a um décimo de seu tamanho atual. O problema, então, seria inverso: se eu me apresento como “ibu,” como uma pessoa, quanto desse controle social consigo suportar ? Isso poderia ser também um problema. O negócio é a proporção da mesclagem. Quando não há controle social, então surgem as condições do gueto; caos e anarquia — no pior sentido ‘ e é necessário um policial em cada andar. Isso não é bom. Mas é preciso, da mesma maneira, ter algum espaço para que seja possível às pessoas se defenderem desse controle interno. Um aspecto de espaço é o tamanho. Se houver 500 pessoas, então é fundamental que o anonimato seja assegurado. Aí é possível fazer as coisas, os bolos podem ter várias entradas e saídas, a fim de que ninguém veja você. Em bolos menores, tal controle se converteria num pesadelo, um bolo maior seria melhor. Os bolos podem fazer contratos de bolo global. Eu posso me mudar a qualquer hora, depois de aviso, e um bolo sim, outro não, tem capacidade livre para pessoas que simplesmente queiram se tornar hóspedes, mas talvez para ficar. Posso me mudar de qualquer lugar para qualquer lugar. Isso evitaria que as pessoas ficassem muito adstritas ao controle social, porque então teriam receio de que eu me mudasse.
Quando se começa a falar em bolos, o perigo é vê-los como construções isolacionistas, um pouco como as grandes comunas dos anos 70. Mas eu gostaria de me afastar disso completamente. Para mim, pode-se dizer que os bolos são organizações eficientes de civis. Você entra com um contrato e sai da mesma forma. Talvez você traga sua riqueza consigo, mas também a leva quando sai. Não são comunas. Também, dentro, talvez haja famílias ou grupos em coletividade e pessoas sozinhas; todos têm sua própria esfera privativa. Poderiam também existir bolos onde as pessoas querem dormir em dormitórios imensos, não se poderia evitar isso ‘ também está OK. Mas também poderiam existir instituições monásticas. O que se precisa, naturalmente, é um contrato planetário de bolo e, para mim, 10% do espaço de moradia e alimentação, em cada bolo, seriam reservados a hóspedes para contrabalançar essa tendência isolacionista. Cada bolo tem que se abrir, de certo modo.
Tradução: Itaucultural Institute, Sao Paulo