Descrição
Educação – Emma Goldman
Entre tantos temas debatidos por Emma Goldman, cabe uma pergunta importante: Porque publicar um livro da autora cujo o tema é a educação? Talvez, a resposta para algumas pessoas possa ser óbvia, tendo em vista a beleza e profundidade do pensamento desta anarquista. Certamente, esta já seria uma resposta apropriada. Contudo, acreditamos que a importância desta publicação resida no fato de que tanto no início do século XX, como hoje, a questão da educação está na ordem do dia e Emma soube muito bem desenvolvê-las.
Neste sentido, vale destacar dois aspectos dos escritos de Emma Goldman sobre a educação: o primeiro histórico e o segundo contemporâneo. Nos textos, Francisco Ferrer, Últimas Cartas de Ferrer e Francisco Ferrer e a Escola Moderna, notamos o impacto que o educador espanhol causou em Emma Goldman e em todas que desejavam um outro mundo. Segundo nossa autora, Ferrer foi uma das figuras mais importantes da história da humanidade, entretanto, não somente por ter sido um ardoroso defensor da pedagogia libertária, pois muitos outros antes dela já haviam ocupado este lugar, como o internacionalista Paul Robin, a communard Louise Michel, o grande conferencista Sébastien Faure e a professora Madalaine Vernet. Então, qual seria a importância particular de Francisco Ferrer?
Para Emma, após o assassinato de Ferrer, este passou não a representar não somente um homem, mas sim, a força de um símbolo. Para os revolucionários e radicais contemporâneos a Emma, a potência por trás da morte de Ferrer residia no fato de que ele simbolizava a tomada de consciência da humanidade contra as injustiças e violência perpetradas pela Igreja Católica, que caçou, prendeu, julgou e matou Francisco Ferrer y Guardia. O eco do grito que soltou após a sua morte – “Viva a Escola Moderna!” – espalhou-se pelo mundo todo e uma onda de manifestações fizeram tremer os tiranos e exploradores de todo mundo civilizado.
Assim percebemos o quão significativo foi Francisco Ferrer e, portanto, compreendemos hoje o porquê é figura esquecida pelas faculdades de pedagogia. “Não basta fuzilar o corpo com uma rajada de vinte tiros, temos, também, que sepultar a memória do revolucionário”. Esta seria a frase que sairia da boca venenosa do conservador de ontem e de hoje. Por isso, quando Emma Goldman rememorava a vida de Ferrer, de seus feitos e de seu ocaso, fazia o mesmo que hoje fazem as combatentes Curdas que rememoram todos que tombaram na luta contra o Estado Islâmico e que são lembrados como grandes heróis de guerra. Lembrar daqueles que já foram é trazer do passado as suas lutas para o presente, nos dando força suficiente para a construção de um futuro livre de hierarquias e exploração, diverso nas suas manifestações culturais e etno-raciais e solidário consigo mesmo, com o outro e com o meio ambiente.
Os dois últimos textos de Emma reunidos no presente livro, possuem uma contemporaneidade que até mesmo nos espanta. A importância da Escola Moderna e A criança e seus inimigos dialogam diretamente com os mais recentes debates em torno da educação, em especial aqueles que travamos aqui no Brasil. Neles Emma Goldman disseca a escola de seu tempo e logo percebemos que não eram tão diferentes das que temos hoje. Antecipando as colocações do filósofo Michel Foucault, a anarquista relaciona as escolas, sejam elas públicas, privadas ou paroquiais, às prisões e quarteis e que têm como única finalidade a disciplina e a uniformização.
Os danos causados por essas escolas são de diversas ordens, tais como a inutilidade do ensino que realizam, a perpetuação dos privilégios de classe – e aqui antecipa também as pesquisas do sociólogo Pierre Bourdieu –, a colaboração com a exploração da classe trabalhadora e, o que considera mais importante, a escravidão e domesticação das massas. A pedagogia estaria à serviço da destruição da individualidade da criança, tornando-a um ser estranho a si mesma, não consegue mais se reconhecer como humano, é mera peça de uma máquina, máquina esta que lhe mói a própria carne. A criança fica, assim, atrofiada, sua mente entorpecida e seu ser deformado, torna-se uma coisa, um objeto. Este autômato não é mais capaz de reconhecer seu lugar na luta social e agora deseja, desesperadamente, obedecer aos déspotas ou salvadores.
Estas colocações ressoam entre os brasileiros de maneira muito sensível, pois, tendo em vista a história de nossa educação, percebemos que ela sempre serviu aos interesses da Igreja, do Capital e do Estado, desde o começo. Do Brasil Colônia até os dias de hoje, a escola foi um espaço atravessado pelo poder, repleto de violências físicas ou simbólicas. Foi o espaço do etnocídio das culturas originárias e africanas, do dogmatismo de um positivismo burguês tacanho que privilegiava a memorização dos feitos dos grandes homens, da disciplinarização e adestramento dos corpos e das mentes em prol da exaltação do grande líder e pai dos pobres, da coisificação e mercantilização nacional-desenvolvimentista onde o produto eram as próprias crianças. Enfim, a escola, assim como pontuou Emma Goldman, é a Prisão, o Quartel, mas também a Fábrica e, podemos dizer agora, a Startup, onde nossa criatividade também se torna mercadoria.
Mesmo sabendo de tudo isso, vemos que alas mais conservadoras reivindicam a ideia de que a escola é um espaço demasiado livre e que seus filhos e filhas ainda podem sofrer alguma influência de professores “mal” intencionados em discutir questões de gênero e outros assuntos. Por isso, nada mais interessante seria, educar a criança em casa, os chamados homescholling. Emma diria que nada é mais pernicioso para criança do que isso. Emma entende que a criança já carrega em si uma sexualidade e que, certamente, será esmagada e reprimida pela família, pois sendo a maioria das famílias crentes das místicas religiosas, “seguem o mau exemplo de seu mestre celestial; aplicam todos seus esforços para limitar e moldar a criança de acordo com sua imagem. Eles se apegam à ideia de que a criança é uma mera parte de si – uma ideia tão falsa quanto prejudicial, e que apenas aumenta a incompreensão da alma infantil, da suposta necessidade de escravizá-la e subordiná-la.”
Mesmo nas famílias onde os pais fazem parte dos movimentos radicais, estes não conseguem romper com essa mesma dinâmica da família tradicional, pois a criança pode até não saber o “pai nosso” e a “ave maria” de cor, mas “o pai livre pensador se orgulha que seu filho de quatro anos reconhece a figura de Thomas Paine ou Ingersoll, ou que sabe que a ideia de deus é estúpida. Ou o pai socialdemocrata que aponta para sua garotinha de seis anos e diz: “Quem escreveu o Capital, querida?” “Karl Marx, pai!” Ou a mãe anarquista que nomeia sua filha de Louise Michel, Sophia Perovskaya, ou que ela recite os poemas revolucionários de Herwegh, Freiligrath ou Shelley, e que ela reconheça os rostos de Spencer, Bakunin ou Moses Harmon em qualquer lugar”, incorrem no mesmo erro de compreender a educação como um fenômeno que se dá de fora para dentro, quando, na verdade, se dá de dentro para fora.
Para Emma Goldman, uma educação revolucionária decorre de um processo natural e espontâneo, mas que está ancorado nos laços sociais e intersubjetivos que estabelecemos com cada pessoa que nos rodeia. O indivíduo e o coletivo não são tomados isoladamente, são parte de uma totalidade, sendo que o papel da educação anarquista é a de possibilitar o desabrochar da bela e livre potência que reside em cada um de nós.
Esperamos que com esta publicação, possibilitemos o encontro de você, leitora ou leitor, com Emma Goldman. E que a partir desse encontro, Emma possa te afetar de alguma forma, criando uma dúvida, incômodo, reflexão ou até mesmo raiva. Pois, como os escritos nos mostram, não conseguimos sair ilesos da mulher mais perigosa da América.
Boa leitura!